Davi é um dos nomes mais fortes e emblemáticos de que se tem notícia.
Surgiu há milênios, atribuído a um modesto pastor de ovelhas que se
tornaria o terceiro - e mais importante - rei de Israel. Na Bíblia,
seu nome é mencionado exatas 1.139 vezes, um recorde. Nada foi fácil
para Davi. De origem humilde, era o caçula de oito irmãos. Entre um
pastoreio e outro, tocava harpa na corte do rei Saul. Foi ali que acabou
confrontado com o desafio que mudaria sua vida.
Naqueles tempos, por volta de mil anos antes de Cristo, os judeus
tinham nos filisteus seus grandes inimigos. E os filisteus, segundo as
sagradas escrituras, tinham no gigante Golias, um homenzarrão que muitos
acreditam ter medido 2,92 metros, seu maior trunfo. A tática
funcionava. Ninguém aceitava enfrentar o monstro. Pelo menos, até aquele
instante.
Davi, então um jovem ruivo, franzino e de cabelos cacheados,
envergonhado com a covardia dos soldados judeus que fugiam do confronto
com o gigante inimigo, aceitou o desafio e foi para o “mano a mano” com
Golias. Ao topar com o frágil adversário, Golias começou a gargalhar.
Foi seu último erro. Munido de uma funda, um pedaço de corda com uma
pedra amarrada na extremidade, Davi golpeou Golias, acertou a sua testa,
desmoronou o gigante - e, de resto, seus aliados, que fugiram
amedrontados. Como recompensa por sua bravura, o rei Saul ofereceu uma
de suas filhas para se casar com Davi. Depois da morte de Saul e de seu
filho, Isboset, Davi unificaria as doze tribos de Israel e reinaria por
40 anos. Coincidência ou não, “Davi”, em hebraico, significa
literalmente “amado”, “querido”.
Miguel é nome de anjo. Mais precisamente, do príncipe dos anjos, aquele que, segundo o Livro do Apocalipse, vai
comandar os exércitos do Céu contra as forças de Satã quando o fim dos
tempos chegar, triunfando sobre o mal no Armageddon. Por isso mesmo, é
arcanjo, um “anjo superior”. Nos primórdios do cristianismo, nos séculos
IV e V, Miguel também era considerado um anjo de cura. Naquela época,
não era raro encontrar templos dedicados a São Miguel e seu poder
curativo.
Há em Franca um Davi Miguel. Nasceu em 12 de março de 2014, depois de
uma gestação tranquila. Os primeiros cinco dias de vida foram os únicos
que passou em casa. Desde então, segue internado. A maior parte do
tempo, no Hospital Regional de Franca. A exceção foram os 43 dias no
Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, para onde foi encaminhado em
busca de um diagnóstico quando ninguém mais conseguia entender porque o
bebezinho que nasceu tão saudável perdia peso sistematicamente e tinha
uma diarreia que não cessava.
A explicação veio com nome complicado. Davi Miguel nasceu com a
raríssima Doença da Inclusão das Microvilosidades, ou Síndrome da
Diarreia Intratável. É tão rara que o primeiro caso foi documentado
apenas em 1978. Pouco se sabe sobre a doença, uma falha genética que faz
com que o intestino simplesmente não absorva os nutrientes dos
alimentos, sejam sólidos, líquidos ou pastosos, quer processados ou
crus, tenham a origem que tiver. Crianças que nascem com a doença
precisam ser submetidas emergencialmente a alimentação parenteral,
aquela introduzida através de um cateter.
A única alternativa de tratamento, com todos os riscos que traz
embutida, é um complicadíssimo transplante de intestino. Poucos
hospitais no mundo fazem a cirurgia. No Brasil, é até possível, mas o
tratamento ainda é embrionário e experimental. Um dos lugares onde a
cirurgia pode ser realizada com maior taxa de sucesso é no Jackson
Memorial, hospital de referência em Miami, nos Estados Unidos. É
exatamente para lá que Davi Miguel precisa ir.
Para “ir”, não basta vontade. É preciso ter R$ 2 milhões disponíveis
para custear o tratamento. É preciso também que a criança esteja em boas
condições, com peso mínimo entre sete e dez quilos. Superadas estas
dificuldades, Davi Miguel e sua família ainda terão que esperar já nos
Estados Unidos até que seja encontrado um doador compatível. Em outras
palavras, até que uma criança de idade semelhante morra e sua família
concorde em doar seu intestino. Os passos seguintes envolvem a cirurgia
propriamente dita e a recuperação que se seguirá a ela, onde muitos
remédios terão que ser administrados para combater a rejeição. O caminho
à espera de Davi Miguel é assim: longo, íngreme, sinuoso. Mas é o único
que ele pode trilhar.
Depois de usar dez diferentes catéteres, superar nove infecções e
emocionar uma cidade inteira com sua garra, Davi Miguel já mostrou que é
mais do que digno de ter uma chance. A população de Franca e tantos
outros milhares país afora exigem que esta chance seja garantida a ele
pelo governo brasileiro, o mais rapidamente possível. Se é peso que ele
precisa ganhar antes de viajar ao Exterior, que as autoridade viabilizem
o tratamento necessário para este objetivo, onde houver, aqui no
Brasil. O que não se admite mais são desculpas para a falta de ação ou
disputas judiciais contraprudecentes.
Não sei qual foi a motivação de Jesimar e Dinea Gama, os pais deste
bravo guerreiro, na escolha de seu nome, mas duvido que pudessem ter
encontrado opção mais adequada. A força e a coragem do Davi que reinou
sobre Israel e o poder curativo do arcanjo Miguel são inspirações
importantes. Estamos todos juntos, unidos, torcendo para que Davi Miguel
supere um a um os obstáculos em seu caminho. Que o bom senso prevaleça
no governo e na justiça, ao menos desta vez. Há uma criança de dez meses
que depende disso para viver.
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